DE PIROCAIA A MONTESE

"Vi, vivi e me contaram"
RAIMUNDO XIMENES 22/07/2013

Agricultor, motorista e dentista. Se o Montese cresceu e engolfou o sítio, Raimundo Nonato Ximenes, 91 anos, se diverte lavrando a memória, de si e dos outros.

DEIVYSON TEIXEIRA
Quando o agricultor Raimundo Nonato Ximenes ganhou o mundo, levantando pouso das lavouras de Groaíras, a 220 quilômetros de Fortaleza, não tinha em mente que, alistando-se no Exército e servindo por sete meses num paiol, estaria embarcando numa aventura maior que a da guerra. O coração, àquela altura, batia que nem louco em duas direções geográficas diferentes: de um lado, a cidadezinha sertaneja, onde deixara uma noiva caprichosa à espera; do outro, o front de batalha, onde muitos amigos haviam perecido.
À noite, o rapazote de pouco estudo calhava de matutar, mas a cabeça não se resolvia. Até que o tempo passou. Com uma mãozinha dos cearenses que engrossavam a Força Expedicionária Brasileira (FEB), a 2ª Guerra Mundial acabou apenas alguns dias depois de vencida a sangrenta batalha de Montese, no norte da Itália. O ex-lavrador se lembraria depois: “Aqueles foram tempos em que a cobra fumou até o cachimbo cair”.
Ximenes, que já vinha se aprumando nas letras na escolinha do quartel, despachado da lide militar, viu-se guiando ônibus pelas ruas de Fortaleza. Insatisfeito com a parca ciência e varado de saudade da mulher, deliberou consigo, debaixo do teto da casa taipa: vou estudar, me formar, fazer uma casa e me casar. Assim foi.
De agricultor a estudante de odontologia. De passagem, ajudou a inventar um bairro. Aos 91 anos, pai de sete filhos, guardador de 23 netos, herói de cinco bisnetos e companheiro de dois vira-latas, Ximenes só fica sério quando precisa deixar uma coisa bastante clara: a vida é muito boa. O POVO - Aproveitando que o senhor falou de segurança (antes de começar a entrevista, Raimundo havia recitado um poema cujo desfecho reflete, com bom humor, sobre o temor de morar no Montese), o senhor tem medo de viver no bairro?
Raimundo Nonato Ximenes -Sim, tenho muito. Sou católico apostólico romano, mas tenho medo porque já fui assaltado. Entrou um cara com revólver e assaltou a gente. A maior confusão do mundo. Foi embora. Antes, deu um tiro, mas o revólver não disparou. Mandei colocar cerca elétrica e alarme.
OP - Isso alterou a sua ligação com o Montese? Fale sobre ela. Afinal, o senhor morou grande parte de sua vida nele.Ximenes - Eu era pra ter me mudado. O pessoal oferece dinheiro, e não é muito bom ficar sozinho com a minha mulherzinha. Mas eu não quero. Gosto daqui. A casa não vale nada; o terreno, sim. A gente tinha muito prazer em morar, mas não é mais aquela vida. 
OP - O que foi que mudou?Ximenes - Mudou muito. No começo, tinha poucos vizinhos. O bairro cresceu. Hoje temos 25 mil pessoas, mas já foram 60 mil. Em 1946, era mato. Depois, em 50, 60, começam a construir. Em 54, chega o calçamento. Antes, passava uma ruma de boi em frente, era uma chocalhada danada. A gente tinha vida social, tinha muita festa, tertúlia, comemorava o aniversário do bairro. 
OP - O senhor já trabalhou com muita coisa. Quais foram as ocupações do senhor?Ximenes - Ave Maria, foram muitas. Fui agricultor, motorista de ônibus, militar no tempo da guerra (2ª Guerra Mundial), limpador de privada, jornalista, dentista, acadêmico. Depois da guerra, queria até voltar pro sertão, mas comprei esse terreno (onde construiu a casa). Mas era o chamado da pátria, não podia recusar. Era pobre, não estudava. Só fui ganhar sapato depois que entrei no Exército. Botina. Fazia até calo. Era agricultor do pé duro mesmo, analfabeto. Mas, em dois anos, fiz o primário. Tinha uma escolinha lá (no quartel). Um dia, a professora mandou cobrir um “A” no quadro. Comecei a cobrir o “A” e fui até o fim e depois voltei de novo. Ela disse: “Tem que começar assim, Raimundo, num único sentido”. Eu respondi: “Quando capino uma carreira de mato, eu venho de lá pra cá, vou de cá pra lá. Não faz diferença. É a mesma coisa”.
OP - Conte como foi que o senhor, sem dinheiro, comprou o terreno.Ximenes - Fui a um passeio em Tabapuá (em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza) e um colega de infância do meu pai estava lá. Tinha um terreno pra vender, vim olhar. Era tanta água, rapaz. Isso foi em 1946, depois de dar baixa no Exército. Fiquei com o terreno, fui pagando. Plantei muita coisa aqui, peguei uns pedaços de pau e construí uma casinha de taipa. Fui incorporado (ao Exército) em 7 de abril pra ir pra Itália, me mandaram lá pro Pirambu pra guardar armas. Um ano depois da baixa, lembrei de tudo, do sertão... Me deu uma saudade danada. Foi aquela coisa toda, vai, não vai, vai, não vai (pra guerra). Era abril de novo e eu estava aqui sozinho. Não tinha nada. Minha noiva no Interior, meus parentes longe, e eu nessa casa de taipa. Não gosto nem de falar nisso. Me emociono ainda (seu Ximenes chora). Mas não fui embora. Fiquei. 
OP - Como foi esse período de espera, sem saber se iria pra guerra ou não?Ximenes - Saí do Interior e me despedi. Eu vim em 44. Do Ceará, partiu o primeiro grupo (de soldados) em 24 de dezembro de 1944. Eu era recruta ainda. Se a guerra tem continuado, eu teria embarcado. Quando adentrei no quartel pela primeira vez, em 12 de outubro de 44, me senti meio alarmado. Um soldado com um fuzil falou assim: “Mais um que vai servir de bucha de canhão”. Mesmo com aquela sentença irônica, não podia desistir. Vi muito colega preso por crime de lesa-pátria. Não queria isso. Comigo, foram outros quatro, mas só eu passei no exame físico. Acho que era porque corria muito atrás de bicho lá no sertão. Sempre chegava primeiro nas marchas. Sempre tive resistência. Ainda hoje é assim. Só meu colesterol está um pouco alto, mas está tudo bem. 
OP - O senhor queria ir pra guerra?Ximenes - Aí é que está (rindo). O instrutor dizia pra se desligar de tudo porque a pátria está chamando vocês. A pátria está em primeiro plano. 
OP - Deu para se desligar de Groaíras?Ximenes - Nunca. Tenho uma paródia que diz assim: “Em Groaíras eu nasci e tenho enterrado o meu umbigo; em Fortaleza, plantado meu coração. Agora, no Montese, com certeza, após a minha morte, sei que ficarão as cinzas dos meus sonhos e projetos”. Todos os meus projetos estão enterrados aqui. Era (a guerra) um futuro de incerteza. Com o fim do conflito, resolvi ficar e não voltar. É como um coqueiro que se muda já velho. Ele morre. Mas eu não morri. 
OP - O que foi mais difícil, servir o Exército ou trabalhar como agricultor?Ximenes - Sei lá qual era pior. Tinha minha vidinha lá no meu sertão, mas, se ficasse (em Groaíras), talvez tivesse morrido. Não tinha tanto cuidado com a saúde como tinha no Exército. Não tem mais ninguém da minha faixa etária que eu conheço. 
OP - Como foi o dia em que vocês, soldados, receberam a notícia de que a cidade de Montese tinha sido retomada pela Força Expedicionária Brasileira (FEB)?Ximenes - Ave Maria! Estava no Pirambu, na guarda da munição. Era o paiol da pólvora, rapaz. Comigo tinha outros três soldados. Era oito de maio de 1945. A gente ainda na expectativa de viajar pra Itália, sem saber muita coisa. Porque a gente só tomava conhecimento das coisas por alto. Tudo no escuro. Era a guerra, rapaz! A luz apagada. Li num livro de um camarada falando que até o cinema apagava, desligava. Mas a gente ainda foi muitas vezes no Cine Majestic (fundado em 14 de julho de 1917 na capital cearense) assistir a filme de guerra pra perder o medo. Era muito difícil esse tempo. 
OP - E perdeu o medo?Ximenes - Sei lá (rindo)... Mas a gente ia assim mesmo. Sim, era oito de maio de 45. Era de tarde, quando a gente ouviu muita buzina de carro lá fora, foguetes, fogos de artifício. A gente ficou assustado no paiol, prontos, com arma na mão, sem saber o que era aquilo. Um dizia: lá se vem, lá se vem...
OP - Vocês pensaram que era a guerra?Ximenes - A gente pensou que era o pessoal invadindo Fortaleza (gargalhando). Nós ficamos de arma na mão, ninguém sabia o que era aquilo. Tomamos posição de sentido, mas era o brado da vitória. Ai, meu Deus. Ficamos alegres, comemoramos, nos abraçamos, mas respeitamos a disciplina do Exército, que foi uma grande escola pra mim. Mas o que me marcou mais ainda foi a batalha de 14 de abril de 45. Foi ali que a Alemanha começou a se render. Foi a tomada de Montese. Representou o fim da guerra. Hitler desapareceu, prenderam Mussolini.
OP - Nesse período em que o senhor ficou servindo no paiol, sem saber se iria viajar ou não, e, se fosse, se voltaria, o senhor se correspondia com a sua esposa, mandava cartas pra ela?Ximenes - Sim, mandava cartas. Ela era analfabeta, mas entendia as cartas que o analfabeto mandava. Fiz um curso no Exército de código Morse. Mandava a carta e a tradução. 
OP - O senhor mandava carta de amor em código Morse?Ximenes - Mandava, mas mandava depois a tradução. Até isso a gente fez. Nem registrei isso nos meus livros. Depois disso, passei a estudar e arranjei emprego. 
OP - O primeiro foi de cobrador de cobrador de ônibus.Ximenes - Não, foi de motorista. Trabalhei em duas empresas. Fazia a linha na rua Barão de Aratanha, por ali. Depois encontrei trabalho de servente em uma repartição. Aí fui estudar. Fiz o primário, parei um pouquinho. Era 62. Quando nasceu meu primeiro filho (seu Ximenes teve sete filhos), fui a pé até o Agapito dos Santos pra me matricular no ginásio. Depois comecei a escrever e fui ser jornalista. Quando estava no ginásio, passei a escrever nos jornais. Hoje não escrevo mais. Fiz o científico no Liceu do Ceará. Escolhi lá a profissão: queria ser médico. Aprendi umas coisas no Exército, a dar injeção, revelar filme de raio-x e tudo. Eu baixava muito na enfermaria com medo das coisas. Baixava muito e aprendi. Depois tinha mais dois anos... 
OP - Desculpa, não entendi. O senhor dava entrada na enfermaria com medo do quê?Ximenes - Eu adoecia, não sei explicar (rindo). É aquela história... Na minha ficha tinha muito isso: baixou na enfermaria. Sei lá... Qualquer coisinha que dava no pé, baixava na enfermaria. Aprendi a dar injeção de tanto ir lá. Fiquei logo senhor da coisa (rindo), mesmo analfabeto ainda. E por isso fiz a opção pelas ciências médicas. Pensei: se eu quero ser alguma coisa na vida, vai nascendo filho e eu ganhando pouco... Não era brincadeira. Morava numa casinha de taipa... E eu já tinha essa vocação pras ciências médicas. 
OP - Quando descobriu essa vocação pras ciências médicas?Ximenes - Sei lá, foi nessas andanças mesmo. E eu também tinha vontade de servir à humanidade. Como dentista, me realizei plenamente. Trabalhei 40 anos, nove no Hospital São Vicente de Paula atendendo os “malucos”. Dava mais alta aos doentes do que os médicos mesmo. Então, voltando. Fui fazer vestibular, mas tinha certeza que não ia passar. Conhecia o nível da turma. Tirei o 3º lugar pra Odontologia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi uma surpresa pra mim. Eu, um analfabeto do sertão, conseguir uma coisa dessas. Me formei e montei o consultório aqui em casa mesmo. No consultório, em casa, o sábado era o dia do pobre. E ainda tinha gente que pagava o dente que eu arrancava com parelha de cheiro verde. 
OP - Em 1999, o senhor conheceu a cidade italiana de Montese (pertencente à província de Modena, no norte do país, tem pouco mais de três mil habitantes). Qual a principal diferença entre a Montese italiana e o Montese cearense?Ximenes - O prestígio que eles dão aos brasileiros. Dão mais prestígio do que aqui. Guardam tudo, prestigiam mais a FEB do que os brasileiros. Eles querem muito bem ao Brasil. Fui tratado como herói. Foi a maior festa do mundo. Foi um tratamento que a gente não pode nem calcular.
OP - O senhor trocaria a Montese de cá pela de lá?Ximenes - De jeito nenhum (rindo). Lá é outra história. 
OP - Por que o senhor propôs mudar o nome de Pirocaia pra Montese?Ximenes - Deixa eu dizer. Sozinho aqui, ela (a esposa, dona Libânia Feijão Ximenes, 88 anos) no sertão, numa tarde fria de abril de 46. Passou um filme da minha vida. Os colegas que voltaram, sem recursos nem nada, porque o Getúlio (Vargas, ditador brasileiro de 1937 a 1945) não deu nada pra ninguém. Morreu muita gente. Me lembrei disso tudo, da batalha de Montese e da guerra, que acabou 26 dias depois. Parece que fiz uma sublimação disso tudo. Eu disse: “Meu Deus, vou chamar esse meu lugarzinho de Montese em homenagem aos companheiros que ficaram lá e aos que voltaram”. O gesto foi esse. Antes, a região toda era Pirocaia. Só era mato. Saí divulgando (o nome novo). Arranjei um emprego na Justiça, e lá me perguntaram onde eu morava. Respondi: no Montese. Achavam que era fora da cidade.
OP - Houve quem estranhasse a novidade?Ximenes - Não lembro, mas tinha um cara, que foi da Marinha Mercante e falava que tinha ido pra guerra, mas era só conversa. Mostrava umas marcas no calcanhar e dizia que era de bala. Era só calo seco. Esse cara costumava falar que Pirocaia era “piroca de índio”. Aí depois descobri que significava “aldeia dos peles queimadas”. 
OP - O seu livro (De Pirocaia a Montese - fragmentos históricos, publicado em 2004) fala de saúde, gastronomia, calçamento, boticas, bodegas, prostíbulos, depósitos de construção etc. É um raio-x do bairro. O senhor pesquisou ou saiu tudo da memória?Ximenes - Aconteceu e participei. Vi, vivi e me contaram. Tem muita coisa da memória também, mas é a história do bairro. Por exemplo: um acidente de avião em 62. Morreram 12 pessoas e um jumentinho. Era um avião militar. Ligaram pra repartição, vim pra cá correndo. Mas deixa eu dizer: o que mudou mesmo aqui foi o calçamento. Saiu aquela “chocaieira” do boi pro som do carro passando na rua. 
OP - O senhor gostou dessa mudança?Ximenes - Naquele tempo (da “chocaieira” na rua) era bom porque podia dormir de porta aberta. Depois chegaram os vizinhos. Todo mundo se reunia, se conhecia, tinha festa. Com a chegada do asfalto, em 68, mudou tudo. O bairro começou a crescer, e as tradições populares sumiram. Mas a grande mudança mesmo foi o comércio. Até já comparei a Gomes de Matos de hoje com a avenida Paulista (via paulistana). Foi o rolo compressor do progresso. A gente começou a morar sem vizinho. O pioneiro dos negócios foi a confecção, depois autopeças, material de construção. Hoje só tem comércio, e a gente está sozinho. 
OP - O senhor conhece os seus vizinhos?
Ximenes - Nada. Não sei quem é quem. É tudo comércio. Uma vez, o vizinho de trás veio até aqui, mas porque estava caindo cajá do meu sítio na casa dele. Mas ele não quis muita conversa, não. Hoje não tem muita convivência. Como a gente está enraizado aqui... Até as nossas cartas de amor estão enterradas aqui, no cacimbão.
OP - As cartas enviadas para sua esposa?Ximenes - Sim, enterrei no cacimbão. Bem ali (aponta uma área nos fundos da casa). Deu bicho, tinha traça. 
OP - O senhor acompanhou as manifestações de junho no Brasil?Ximenes - Acompanhei, claro.
OP - O que achou? É uma mudança mesmo?
Ximenes - O povo acordou. Acho que, com a força do povo, alguma coisa vai mudar. A Dilma está com muita dificuldade. Tenho até pena dela. Está sem saber onde pisa. É um negócio danado.

Do Jornal O Povo (Páginas Azuis) de 22-7-2013.

Comentários

  1. Meu pai ja falecido ,chegou na Pirocaia em 1949,ele e minha mae tb ja falecida...lembro das historias q ele contava do bairro mas acho q tb era chamada do Sao Vicente não tenho certeza.Ele era amogo do seu Ximenes...os dois serviram no exercito juntos,o nome do meu pai era Rafael,apelido "Seu Rafael"Trabalhou em um só lugar 45 anos Light,Conefor ,Serviluz acabou virando Coelceum abraço para tds.

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