FRANÇA: EXPANSÃO PELA INVASÃO

França, a invasão como modelo de uma política externa
"Estamos na segunda semana da invasão francesa da República Centro-Africana, a de número 52 contra países africanos" (*)

Desde 1960, firmou-se o mito de que, na política de relações internacionais Norte/Sul, o país que detém a primazia nas ações intervencionistas são os Estados Unidos. Isso deve efetivamente ser visto apenas como mito. Na realidade, a pouco invejável posição na escala global desse tipo de ação não é dos Estados Unidos, mas da França, cujo foco geográfico de ações invasivas no hemisfério sul tem sido na África, definindo, assim, um padrão de política externa.
Correntemente, estamos na segunda semana da invasão francesa da República Centro-Africana. Trata-se, também, da segunda invasão do país em onze anos e, mais importante, a de número 52 promovida pela França contra países africanos de língua francesa, os chamados francófonos, desde 1960: no início de 2013, forças francesas haviam ocupado o Mali (invasão nº 51), em 2011 lideraram a invasão da Líbia, em operação conjunta com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos (nº 50), e em 2010, entraram na Costa do Marfim (nº 49).
Os países africanos francófonos totalizam 22, a maioria nas regiões Oeste, Nordeste, Central e Sudeste do continente, e foram ocupados pela França no curso das invasões europeias, ao longo do período que vai do século XV ao XIX. Apesar das independências obtidas a partir dos anos 1960, a França do pós-Segunda Guerra, da presidência de Charles de Gaulle até a atual de François Hollande, tem demonstrado flagrante desprezo pela soberania dos países que estiveram sob seu jugo. Comparativamente, a “Doutrina Brejnev” da Guerra Fria, que restringia a soberania dos países do Leste europeu componentes da aliança com a União Soviética no ambiente do Tratado de Varsóvia, determinava uma relação bem mais equilibrada.
Para a França, a República Centro-Africana e os demais países de língua francesa são sua propriedade perpétua. Com a economia fragilizada e em permanente dificuldade, o domínio sobre os países africanos permite-lhe colher níveis gigantescos de capitais e recursos minerais e agrícolas que não poderiam ser produzidos em seu próprio território. Por outro lado, as invasões embutem um brutal viés, pois são os próprios africanos que pagam pelas intervenções francesas em seus países, conforme demonstrou o economista Gary Busch em excelente pesquisa realizada em 2011, que recebeu o impressionante título: “Africanos pagam as balas usadas por franceses para matá-los”. Busch chama a atenção do mundo para os “documentos de litígio territorial” impostos pela França em 1960 e que delinearam as suas futuras relações com a África de língua francesa:
“A França detém bilhões de dólares dos países africanos francófonos para investimento em sua própria bolsa de valores... Estados africanos depositaram o equivalente a 85 % de suas reservas anuais em bancos de Paris como consequência de acordos celebrados depois de encerrada a ocupação e nunca lhes foi apresentada a prestação de contas sobre o quanto os franceses estão retendo, em que fundos tais recursos foram investidos e qual o lucro ou a perda verificada.”
Na verdade, é por conta do total controle francês sobre a maioria das finanças da África francofónica que nenhum presidente francês (de de Gaulle a Hollande) necessitou de autorização de seu parlamento (Assembleia Nacional) ou liberação de orçamento para realizar qualquer das 52 invasões promovidas na África nos últimos 54 anos. As necessidades de recursos são supridas pelo dinheiro africano, depositado em seus estabelecimentos bancários, empregados, assim, para invadir a África e garantir ainda mais recursos agrícolas e minerais para os franceses.
Em março de 1998, o presidente socialista François Mitterand disse a um entrevistador que “sem a África, a França não teria relevância histórica no século XXI”. Essa avaliação foi reforçada na mesma entrevista por Jacques Godfrain, ex-ministro das Relações Exteriores francês, que moldou a sua própria resposta em termos geoestratégicos: “Mesmo sendo um país pequeno, com uma reduzida força militar, podemos mover o planeta, devido as nossas relações com 15 ou 20 países africanos”. A inferência sobre tais declarações é a de que a África é ao mesmo tempo a oportunidade e o limite de impacto da política externa francesa no mundo contemporâneo.
Inevitavelmente, levantam-se duas questões principais: até quando os africanos aceitarão ser submetidos a essa subjugação em pleno século XXI? Não parece óbvio que países como a República Centro-Africana, o Mali, o Níger, a República Democrática do Congo, a República do Congo, o Burundi, a Costa do Marfim e outros mais deveriam interromper tamanha opressão?

(Tradução de Sued Lima)

(*) Herbert Ekwe-EkweProfessor britânico, especialista em Estados, genocídios e guerras na África; professor visitante da Unifor e colaborador do Observatório das Nacionalidades.

Do Jornal O Povo de 05-01-2014.

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