Nós e o pipi dos egípcios

Carlos Chagas
Heródoto viajou muito pelo mundo conhecido, há mais de dois mil anos. São do genial grego os relatos sobre a vida na Mesopotâmia, na Pérsia e no Egito. Mordaz e cheio de humor, depois de passar meses junto às pirâmides, escreveu o que mais o impressionara naquele povo tão místico quando pleno de conhecimentos: “Lá, as mulheres fazem pipi de pé e os homens, sentados”…
As lições do Pai da História são válidas, menos porque alinhava nomes de reis e relatos de batalhas, mais porque se referia aos costumes e à cultura dos povos visitados.
Caso pudesse retornar e escrever sobre o Brasil atual, o magnífico historiador não deixaria de notar as mudanças verificadas no país, desde a ascensão dos militares ao poder, a tragédia de Tancredo Neves e a volta à democracia, além dos anos Lula. Ficaria apenas na resenha de nossos eventos políticos fundamentais? Certamente não. Haveria espaço para Heródoto mergulhar mais fundo nas características do povo brasileiro.
Por exemplo: sua capacidade de percepção poderia espantar-se mas o levaria a registrar que aqui, ao contrário de outras civilizações, prevalece a moda de cada um tentar passar o semelhante para trás. Sem diferença de classe, raça ou riqueza, estamos todos prontos a seguir os conselhos do Gerson, aquele que procurava levar vantagem em tudo.
Precisamos reformar nossa casa e pintar outra vez as paredes? O solícito pintor vai misturar água na tinta para o trabalho ficar perfeito na aparência, ainda que pouco depois necessite ser refeito. Levamos o automóvel à oficina? O mecânico conserta uma peça e engatilha outra, para voltarmos no mês seguinte. Compramos um quilo de batatas no supermercado? Uma balança honesta registraria 900 gramas. A empregada doméstica pede uma semana de licença para tratar da mãezinha doente? Poderá ser vista todas as noites num baile funk, porque é órfã desde pequena.
Num escritório qualquer, ao redigir a nota de despesas, a secretária acrescenta percentuais acima da soma dos recibos. Quem viaja a serviço cobra a hospedagem no hotel, mas dormiu na casa do primo ou da tia. O motorista de táxi dá voltas no mesmo quarteirão para esticar a corrida. O garçom do bar ou do restaurante acrescenta mais um chope que não tomamos ou um couvert que não pedimos.
Mas tem muito mais, se mudarmos de patamar. O professor recomenda aos alunos livros da editora onde tem participação nas vendas, e o médico, aos seus pacientes, remédios de laboratórios que o agraciam com comissões. Para ficar no tema, os planos de saúde prometem fantasias para conquistar associados, ainda que na hora da necessidade rejeitem até atendimento de emergência. Nos postos de gasolina, enchemos o tanque com supostos 50 litros, mas só foram bombeados 47.
Vamos às compras e a velhacaria prevalece: 499 reais por um produto quando na realidade o preço é 500, no mínimo, fora a malandragem nas prestações que triplicam o custo da compra. Um carro por 29.999,00 reais? Ora, a quem pensam enganar, senão ao abobalhado telespectador que sai correndo para buscar o falso mais barato, sempre o mais caro? Veículos capazes de fazer a felicidade das famílias e levar o motorista à estratosfera, com mulher e filhos sorridentes? Basta comparar os preços daqui com os da Europa ou dos Estados Unidos. Tratamentos para emagrecer, para parar de tossir, para dormir feito um anjinho? Tudo mentira.
Vamos adiante, porém, se tivermos fôlego. Que tal abrir uma conta neste ou naquele banco que anuncia juros em baixa e benefícios em alta? Que alguém caia nas malhas do cheque especial ou do cartão de crédito, com 290% ao ano, para ver quem é o velhaco.
Lá no ápice da pirâmide é pior. O empreiteiro compromete-se a implantar uma rodovia por determinada quantia, consegue complementos adicionais desde o primeiro mês do contrato e ainda corta pela metade a camada de asfalto prometida. O banqueiro manda para o exterior parte de sua receita sem declarar ao fisco e ainda trás de volta seus milhões para beneficiar-se das facilidades facultadas pelos órgãos administrativos que deveriam fiscaliza-lo. Ao mesmo tempo em que as autoridades monetárias e financeiras espalham estar promovendo a justiça fiscal mas cobram juros e multas muito acima do mercado, sem outra opção ao contribuinte senão perder seu patrimônio se não pagar.
Subindo um pouco mais. No Congresso, bancadas ruralistas, evangélicas, operárias, esportivas e neoliberais sobrepõem-se aos partidos e votam leis capazes de favorecer seus interesses e seus mentores, claro que em troca de favores e propinas servindo como material de troca.
Do Judiciário, não é necessário falar. São poucos os meritíssimos desligados de escritórios de advocacia de filhos, sobrinhos e amigos do peito, que recomendam por via transversa e por via direta para ajudar nas sentenças. No Executivo, quaisquer que sejam os partidos no poder, o sistema de mérito para preenchimento de cargos pertence à patota.
Em suma, Heródoto se deliciaria com as práticas vigentes em nossa sociedade. O pipi de brasileiros e brasileiras não chamaria sua atenção, mas o resto…

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