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REFLEXÃO CRISTÃ

AMA, TRABALHA, ESPERA E PERDOA

Quando deu acordo de si, a noite havia fechado de todo. O céu oriental resplandecia de estrelas. Ventos suaves sopravam de longe, refrescando-lhe a fronte in­candescida. Acomodou-se como pôde, entre as pedras agrestes, sem coragem de eximir-se ao silêncio da Natu­reza amiga. Não obstante prosseguir no curso de suas amargas reflexões, sentia-se mais calmo. Confiou ao Mestre as preocupações acerbas, pediu o remédio da sua misericórdia e procurou manter-se em repouso. Após a prece ardente, cessou de chorar, figurando-se-lhe que uma força superior e invisível lhe balsamizava as chagas da alma opressa.
Breve, em doce quietude do cérebro dolorido, sentiu que o sono começava a empolgá-lo. Suavíssima sensação de repouso proporcionava-lhe grande alívio. Estaria dor­mindo? Tinha a impressão de haver penetrado uma região de sonhos deliciosos. Sentia-se ágil e feliz. Tinha a impressão de que fora arrebatado a uma campina to­cada de luz primaveril, isenta e longe deste mundo. Flores brilhantes, como feitas de névoa colorida, desa­brochavam ao longo de estradas maravilhosas, rasgadas na região banhada de claridades indefiníveis. Tudo lhe falava de um mundo diferente. Aos seus ouvidos toavam harmonias suaves, dando idéia de cavatinas executadas ao longe, em harpas e alaúdes divinos. Desejava identificar a paisagem, definir-lhe os contornos, enriquecer observações, mas um sentimento profundo de paz deslum­brava-o inteiramente. Devia ter penetrado um reino ma­ravilhoso, porqüanto os portentos espirituais que se pa­tenteavam a seus olhos excediam todo entendimento. (2)
Mal não havia despertado desse deslumbramento, quando se sentiu presa de novas surpresas com a apro­ximação de alguém que pisava de leve, acercando-se de mansinho. Mais alguns instantes, viu Estevão e Abigail à sua frente, jovens e formosos, envergando vestes tão brilhantes e tão alvas que mais se assemelhavam a peplos de neve translúcida.
Incapaz de traduzir as sagradas comoções de sua alma, Saulo de Tarso ajoelhou-se e começou a chorar.
Os dois irmãos, que voltavam a encorajá-lo, apro­ximaram-se com generoso sorriso.
— Levanta-te, Saulo! — disse Estevão com pro­funda bondade.
— Que é isso? Choras? — perguntou Abigail em tom blandicioso. — Estarias desalentado quando a tarefa apenas começa?
O moço tarsense, agora de pé, desatou em pranto convulsivo. Aquelas lágrimas não eram somente um desa­bafo do coração abandonado no mundo. Traduziam um júbilo infinito, uma gratidão imensa a Jesus, sempre pró­digo de proteção e benefícios. Quis aproximar-se, oscular as mãos de Estevão, rogar perdão para o nefando passado, mas foi o mártir do “Caminho” que, na luz de sua res­surreição gloriosa, aproximou-se do ex-rabino e o abra­çou efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado. Depois, beijando-lhe a fronte, murmurou com ternura:
— Saulo, não te detenhas no passado! Quem haverá, no mundo, isento de erros? Só Jesus foi puro!...
O ex-discípulo de Gamaliel sentia-se mergulhado em verdadeiro oceano de venturas. Queria falar das suas alegrias infindas, agradecer tamanhas dádivas, mas indô­mita emoção lhe selava os lábios e confundia o coração. Amparado por Estevão, que lhe sorria em silêncio, viu Abigail mais formosa que nunca, recordando-lhe as flores da primavera na casa humilde do caminho de Jope. Não pôde furtar-se às reflexões do homem, esquecer os sonhos desfeitos, lembrando-os, acima de tudo, naquele glorioso minuto da sua vida. Pensou no lar que poderia ter cons­tituído; no carinho com que a jovem de Corinto lhe cuidaria dos filhos afetuosos; no amor insubstituível que sua dedicação lhe poderia dar. Mas, compreendendo-lhe os mais íntimos pensamentos, a noiva espiritual aproxi­mou-se, tomou-lhe a destra calejada nos labores rudes do deserto e falou comovidamente:
— Nunca nos faltará um lar... Tê-lo-emos no cora­ção de quantos vierem à nossa estrada. Quanto aos filhos, temos a família imensa que Jesus nos legou em sua mise­ricórdia... Os filhos do Calvário são nossos também... Eles estão em toda parte, esperando a herança do Sal­vador.
O moço tarsense entendeu a carinhosa advertência, arquivando-a no imo do coração.
— Não te entregues ao desalento — continuou Abi­gail, generosa e solícita —; nossos antepassados conhe­ceram o Deus dos Exércitos, que era o dono dos triunfos sangrentos, do ouro e da prata do mundo; nós, porém, conhecemos o Pai, que é o Senhor de nosso coração. A Lei nos destacava a fé, pela riqueza das dádivas ma­teriais nos sacrifícios; mas o Evangelho nos conhece pela confiança inesgotável e pela fé ativa ao serviço do Todo-Poderoso. É preciso ser fiel a Deus, Saulo! Ainda que o mundo inteiro se voltasse contra ti, possuirias o tesouro inesgotável do coração fiel. A paz triunfante do Cristo é a da alma laboriosa, que obedece e confia... Não tornes a recalcitrar contra os aguilhões. Esvazia-te dos pensamentos do mundo. Quando hajas esgotado a der­radeira gota da posca dos enganos terrenos, Jesus enche­rá teu espírito de claridades imortais!...
Experimentando infindo consolo, Saulo chegava a perturbar-se pela incapacidade de articular uma frase. As exortações de Abigail calar-lhe-iam para sempre. Nunca mais permitiria que o desânimo se apossasse dele. Enorme esperança represava-se, agora, em seu íntimo. Trabalharia para o Cristo em todos os lugares e circunstâncias. O Mestre sacrificara-se por todos os ho­mens. Dedicar-lhe a existência representava um nobre dever. Enquanto formulava estes pensamentos, recordou a dificuldade de harmonizar-se com as criaturas. Encon­traria lutas. Lembrou a promessa de Jesus, de que estaria presente onde houvesse irmãos reunidos em seu nome. Mas tudo lhe pareceu subitamente difícil naquela rápida operação intelectual. As sinagogas combatiam-se entre si. A própria igreja de Jerusalém tendia, nova­mente, às influências judaizantes. Foi aí que Abigail res­pondeu, de novo, aos seus apelos íntimos, exclamando com infinito carinho:
— Reclamas companheiros concordes contigo nas edificações evangélicas. Mas é preciso lembrar que Jesus não os teve. Os apóstolos não puderam concordar com o Mestre senão com o auxílio do Céu, depois da Res­surreição e do Pentecostes. Os mais amados dormiam, enquanto Ele, agoniado, orava no horto. Uns negaram-no, outros fugiram na hora decisiva. Concorda com Jesus e trabalha. O caminho para Deus está subdividido em ver­dadeira infinidade de planos. O espírito passará sozinho de uma esfera para outra. Toda elevação é difícil, mas somente aí encontramos a vitória real. Recorda a “porta estreita” das lições evangélicas e caminha. Quando seja oportuno, Jesus chamará ao teu labor os que possam concordar contigo, em seu nome. Dedica-te ao Mestre em todos os instantes de tua vida. Serve-o com energia e ternura, como quem sabe que a realização espiritual reclama o concurso de todos os sentimentos que enobre­çam a alma.
Saulo estava enlevado. Não poderia traduzir as sen­sações cariciosas que lhe represavam no coração tomado de inefável contentamento. Esperanças novas bafeja­vam-lhe a alma. Em sua retina espiritual desdobrava-se radioso futuro. Quis mover-se, agradecer a dádiva sublime, mas a emoção privava-o de qualquer manifestação afetiva. Entretanto, pairava-lhe no espírito uma grande interrogação. Que fazer, doravante, para triunfar? Como completar as noções sagradas que lhe competia exempli­ficar praticamente, sem anotação de sacrifícios? Deixan­do perceber que lhe ouvia as mais secretas interpelações, Abigail adiantou-se, sempre carinhosa:
— Saulo, para certeza da vitória no escabroso cami­nho, lembra-te de que é preciso dar: Jesus deu ao mundo quanto possuía e, acima de tudo, deu-nos a compreensão intuitiva das nossas fraquezas, para tolerarmos as misé­rias humanas...
O moço tarsense notou que Estevão, nesse ínterim, se despedia, endereçando-lhe um olhar fraterno.
Abigail, por sua vez, apertava-lhe as mãos com imensa ternura. O ex-rabino desejaria prolongar a deli­ciosa visão para o resto da vida, manter-se junto dela para sempre; contudo, a entidade querida esboçava um gesto de amoroso adeus. Esforçou-se, então, por catalo­gar apressadamente suas necessidades espirituais, dese­joso de ouvi-la relativamente aos problemas que o de­frontavam. Ansioso de aproveitar as mínimas parcelas daquele glorioso, fugaz minuto, Saulo alinhava mental­mente grande número de perguntas. Que fazer para adquirir a compreensão perfeita dos desígnios do Cristo?
— Ama! — respondeu Abigail espontaneamente.
Mas, como proceder de modo a enriquecermos na virtude divina? Jesus aconselha o amor aos próprios inimigos. Entretanto, considerava quão difícil devia ser semelhante realização. Penoso testemunhar dedicação, sem o real entendimento dos outros. Como fazer para que a alma alcançasse tão elevada expressão de esforço com Jesus-Cristo?
— Trabalha! — esclareceu a noiva amada, sorrindo bondosamente.
Abigail tinha razão. Era necessário realizar a obra de aperfeiçoamento interior. Desejava ardentemente fa­zê-lo. Para isso insulara-se no deserto, por mais de mil dias consecutivos.
Todavia, voltando ao ambiente do esforço coletivo, em cooperação com antigos companhei­ros, acalentava sadias esperanças que se converteram em dolorosas perplexidades.
Que providências adotar contra o desânimo destruidor?
— Espera! — disse ela ainda, num gesto de terna solicitude, como quem desejava esclarecer que a alma deve estar pronta a atender ao programa divino, em qualquer circunstância, extreme de caprichos pessoais.
Ouvindo-a, Saulo considerou que a esperança fora sempre a companheira dos seus dias mais ásperos. Sa­beria aguardar o porvir com as bênçãos do Altíssimo. Confiaria na sua misericórdia. Não desdenharia as opor­tunidades do serviço redentor. Mas... os homens? Em toda parte medrava a confusão nos espíritos. Reconhecia que, de fato, a concordância geral em torno dos ensina­mentos do Mestre Divino representava uma das realiza­ções mais difíceis, no desdobramento do Evangelho; mas, além disso, as criaturas pareciam igualmente desinteressadas da verdade e da luz. Os israelitas agarravam-se à Lei de Moisés, intensificando o regime das hipocrisias farisaicas; os seguidores do “Caminho” aproximavam-se novamente das sinagogas, fugiam dos gentios, subme­tiam-se, rigorosamente, aos processos da circuncisão. Onde a liberdade do Cristo? Onde as vastas esperanças que o seu amor trouxera à Humanidade inteira, sem exclusão dos filhos de outras raças? Concordavam em que se fazia indispensável a mar, trabalhar, esperar; entre­tanto, como agir no âmbito de forças tão heterogêneas? Como conciliar as grandiosas lições do Evangelho com a indiferença dos homens?
Abigail apertou-lhe as mãos com mais ternura, a indicar as despedidas, e acentuou docemente:
— Perdoa!...
Em seguida, seu vulto luminoso pareceu diluir-se como se fosse feito de fragmentos de aurora.
Empolgado pela maravilhosa revelação, Saulo viu-se só, sem saber como coordenar as expressões do próprio deslumbramento. Na região, que se coroava de claridades infinitas, sentiam-se vibrações de misteriosa beleza. Aos seus ouvidos continuavam chegando ecos longínquos de sublimes harmonias siderais, que pareciam traduzir men­sagens de amor, oriundas de sóis distantes... Ajoe­lhou-se e orou! Agradeceu ao Senhor a maravilha das suas bênçãos. Daí a instantes, como se energias impon­deráveis o reconduzissem ao ambiente da Terra, sentiu-se no leito rústico, improvisado entre as pedras. Incapaz de esclarecer o prodigioso fenômeno, Saulo de Tarso contemplou os céus, embevecido.
O infinito azul do firmamento não era um abismo em cujo fundo brilhavam estrelas... A seus olhos, o espaço adquiria nova significação; devia estar cheio de expressões de vida, que ao homem comum não era dado compreender. Haveria corpos celestes, como os havia terrestres. A criatura não estava abandonada, em par­ticular, pelos poderes supremos da Criação. A bondade de Deus excedia a toda a inteligência humana. Os que se haviam libertado da carne voltavam do plano espiritual por confortar os que permaneciam a distância. Para Estevão, ele fora verdugo cruel; para Abigail, noivo ingrato. Entretanto, permitia o Senhor que ambos regressassem à paisagem caliginosa do mundo, reani­mando-lhe o coração. A existência planetária alcançava novo sentido nas suas elucubrações profundas. Ninguém estaria abandonado, Os homens mais miseráveis teriam no céu quem os acompanhasse com desvelada dedicação. Por mais duras que fossem as experiências humanas, a vida, agora, assumia nova feição de harmonia e beleza eternas.
A Natureza estava calma. O luar esplendia no alto em vibrações de encanto indefinível. De quando em quan­do, o vento sussurrava de leve, espalhando mensagens misteriosas. Lufadas cariciosas acalmavam a fronte do pensador, que se embevecia na recordação imediata de suas maravilhosas visões do mundo invisível.
Experimentando uma paz até então desconhecida, acreditou que renascia naquele momento para uma exis­tência muito diversa. Singular serenidade tocava-lhe o espírito. Uma compreensão diferente felicitava-o para o reinício da jornada no mundo. Guardaria o lema de Abigail, para sempre. O amor, o trabalho, a esperança e o perdão seriam seus companheiros inseparáveis. Cheio de dedicação por todos os seres, aguardaria as oportu­nidades que Jesus lhe concedesse, abstendo-se de pro­vocar situações, e, nesse passo, saberia tolerar a ignorân­cia ou a fraqueza alheias, ciente de que também ele carregava um passado condenável, que, nada obstante, merecera a compaixão do Cristo.
Autor: Emmanuel
Psicografia de Francisco Cândido Xavier. Livro: Paulo e Estevão
Do www.oespiritismo.com. br

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