EXCESSO DE JUSTIÇA LEVA À INJUSTIÇA

Por Francisco Cardoso
Cicero, em sua obra De officiis (I, 10, 33) já explicava, há 2.056 anos, o dilema central vivido pela Saúde Pública brasileira nos dias de hoje. De officiis deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas desse país.
O Brasil nunca teve um sistema público de saúde de fato. Durante muitos anos existia aqui uma cobertura razoavelmente boa para empregados (INAMPS) e pessoas de posses (Rede Privada/Planos de Saúde), mas na prática a maior parte da população dependia dos hospitais filantrópicos, de caridade e alguns públicos que basicamente eram emergências públicas. Não havia (e não há até hoje), políticas públicas de saúde, nem rede referenciada, nem planejamento estratégico, nada.
Com o SUS, em 1988, criou-se o mito do sistema público perfeito, que resolveria esse problema universalizando a Saúde. O SUS é perfeito, mas apenas no papel. 25 anos depois de sua aprovação, o que vemos é um sistema incompleto, sucateado, que ainda sobrevive da antiga estrutura do INAMPS, que não foi modificada nem ampliada de maneira universal.
Nesse sistema imperfeito e subfinanciado, era comum comunidades inteiras dependerem da vontade de poucos médicos dispostos a irem trabalhar em locais desguarnecidos, desprovidos de estrutura e de recursos. Além disso, com salários pífios, a única maneira de atrair esses médicos era flexibilizar a carga horária.
Esse fenômeno ocorreu em todo o SUS. Negando-se a pagar um salário minimamente decente ou incapazes de oferecerem o básico de estrutura, os gestores ofereciam facilidades no cumprimento da carga horária oficial em troca de ter o médico lá nem que fosse uma vez na semana. 
Bem ou mal, esse esquema "finge que paga, finjo que trabalho" sustentou o SUS nos seus 15-20 anos iniciais. Mal e parcamente, mas evitou eclosões de crises sociais. Mas, de 5 anos para cá principalmente, o avanço na renda, a ascensão social, a ampliação da internet/acesso à informação e uma maior ampliação do acesso escolar fizeram a sociedade em geral passar a reclamar da qualidade da saúde.
Oportunisticamente, o Ministério Público, que se omitiu nos últimos 25 anos a respeito dos desvios de gestão, dos gestores corruptos, da não-implementação da carreira médica do SUS prevista na CF 88, etc, achou nessas queixas pontuais da população um nicho para se promover. Começou então o achaque aos médicos e a cruzada pelo "cumprimento do ponto", com a eclosão de denúncias. Virou lugar-comum notícia envolvendo médicos "que não cumprem o ponto" e o governo passou a usar isso como desculpa para a crise que ele mesmo causou, por sua omissão e incompetência.
Qualquer chefe de repartição sabe que é impossível um servidor ou funcionário faltar ao trabalho sem que ninguém saiba. Logo, se isso é corrente em determinado setor, claro que o chefe do ponto está consciente e participando do esquema. Era o cúmulo da hipocrisia aparecer um "flagrante" de médico (pois paramédico não dá ibope) descumprindo ponto e o chefe dele aparecer com cara de "surpreso" ou "indignação" anunciando punições.
Pois saibam que em todo lugar que médico ou qualquer outro funcionário não está presente em seu horário é com anuência da chefia e dos gestores superiores. Pois esse era o esquema para muitos: Cumpra "X" horas e não reclame do salário baixo. Uma vez quebrada essa corrente e ao ver que o salário não aumentou pela contraparte, os médicos começaram a abandonar o SUS. 
Outra situação era dos acúmulos de vínculos. Uma restrição absurda e abusiva colocada na Lei 8.112/90 limita o número de vínculos públicos. Em muitos locais, em especial no Interior, o médico tinha mais de 2 vínculos (prefeituras, estado, etc) e dava o suporte pra região. Hipocritamente, o MPF foi atrás disso e passou a tratar médicos que trabalhavam mais de 100 horas por semana (e trabalham mesmo, pulando de plantão em plantão) como se fossem bandidos. O mesmo MPF, que fecha os olhos a seus pares que dão aulas em faculdades de Direito em horário de expediente, humilhava médicos que trabalhavam muito mais que qualquer procurador.
O que está acontecendo hoje no Brasil é um teatro: com o MPF e a "sociedade" em cima do "cumprimento das horas" sem questionar "o que é feito nessas horas" ou "qual a estrutura de trabalho oferecida nessas horas", os médicos estão largando o Serviço Público, que responde a esse déficit com editais oferecendo salários 'astronômicos' de mil, mil e quinhentos, três mil reais, para cargas de 40 horas semanais, com toda a responsabilidade que existe. Obviamente, os médicos não aceitam isso, e então o prefeito corrupto grita: "Cadê o médico??" e a Presidente irresponsável "manda vir" médicos importados, como se fossem sacos de ração, sem se preocupar com o mínimo de aferição de qualidade destes. Pelo contrário, usou toda a força do governo para proibir isso de ser feito.
Na prática, as áreas dependentes do SUS estão abandonadas, os médicos de fora estão, obviamente, se concentrando nas capitais e grandes centros, os poucos que vão pra periferia não conseguem fazer nada, a não ser cometer erros médicos graves como prescrição anômala de antibióticos, raio x de pescoço para "tontura", ressonância de abdômen para confirmar gravidez e outras coisas abomináveis que já vimos com apenas um mês do <Mais Médicos>.
Com isso, o governo, o MPF e a dita "sociedade" conseguiram provar o provérbio que ilustra essa matéria:
"O excesso(rigor) de justiça, leva à injustiça suprema." Esse é o atual cenário da Saúde, onde os injustiçados são só os que ficaram sem os médicos perseguidos pelos hipócritas da Lei.


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