UMAS E OUTRAS DO HELIO FERNANDES

Hoje, dia 31 de julho de 1963 (exatamente há 50 anos), está marcado meu julgamento. A repercussão da minha prisão, enorme. Os principais jornais do Rio, São Paulo, Minas e do resto do país dão primeira página diária desde o dia 23. E naturalmente com cobertura no exterior.

Helio Fernandes
Só 8 ministros estão em Brasília. A Constituição (e o Regimento Interno DO PRÓPRIO Supremo) determina: “Com 8 ministros o plenário pode decidir. Com menos, não”.
Assim, o julgamento está garantido. O presidente do Supremo, Ribeiro da Costa, desconfiando dos fatos que estão acontecendo nos bastidores, usou o Regimento e, em vez de sortear um relator, designou a ele mesmo para a função. Ninguém protestou, é regimental.
O que mais intrigou e preocupou o presidente do Supremo: o fato do ministro da Guerra ter assumido imediatamente a autoria e a responsabilidade da prisão. Normalmente, nesses casos, procuram sair da órbita do Supremo, designando um coronel como responsável. O presidente do Supremo achou estranho o comportamento do ministro.
A 1 hora da tarde, um carro do BGP (Batalhão da Guarda Presidencial) me levou para o Supremo. Fiquei na sala dos advogados, seria introduzido no plenário assim que os ministros estivessem presentes, às 2 da tarde.
Fico conversando com os advogados, eles não procuram me tranquilizar. Ao contrário, contam que “o julgamento será muito difícil”. Prado Kelly me diz: “Helio, você não sabe a pressão que está sendo feita pelo Ministério da Guerra e pelo Planalto. Estão jogando tudo na tua condenação”.
Adauto Cardoso, advogado militante, confirma: “Surpreendente que eles tenham enquadrado você na Lei de Segurança, e assim pedido 15 anos de prisão. Dizem que você quebrou segredos de Estado, o que a tolice da circular não confirma”.
Prudente de Moraes, jornalista e advogado, grande figura (da extraordinária geração do Internato do Pedro II, companheiro de infância e da vida toda de Afonso Arinos de Mello Franco, Pedro Nava e outros), me diz: “O principal e contraditório de tudo isso: “Se houver condenação, como o julgamento é no mais alto tribunal do país, não haverá recurso”. E conclui: “Conheço você, já trabalhamos juntos duas vezes, não vou te assustar”.
Sobral Pinto, responsável pela defesa oral, logo depois da intervenção do procurador geral, fala pela primeira vez: “O Prudente está com a razão. Mas como o Helio será absolvido, também não haverá recurso contra. Ele estará imediatamente livre”. Vejam qual era o clima.
COMEÇA O INACREDITÁVEL JULGAMENTO
Às 2,15 sou introduzido no plenário. Conheço vários ministros, nenhum olha para mim nem eu para eles. É do ritual, para evitar até uma possível cumplicidade ou desconfiança no olhar. Embora o Supremo raramente faça julgamentos criminais, com a presença do acusado. O presidente declara aberta a sessão, dá a palavra ao procurador geral.
Este começa a falar com ênfase e veemência, com a violência com que pede a prisão de 15 anos. Dá a impressão de que está no Tribunal de Nuremberg julgando criminosos de guerra. Esquece ou não quer lembrar que sou um jornalista que publicou um documento sem importância. Só valia pelo “sigilo e confidencial”, que o próprio ministro colocou no envelope.
O Procurador termina em 20 minutos, antes de sentar, exausto mas feliz, não deixa de lembrar aos ministros, “o jornalista deliberadamente colocou em perigo a situação do país”.
O presidente do Supremo, relator, desmonta ponto por ponto as alegações do procurador. Levou menos tempo, mas jogou no mar o enquadramento na Lei de Segurança.
É a vez dos ministros, faltam 7. Depois do relator, o segundo leva uma hora, empata em 1 a 1. O terceiro, rapidíssimo, 2 a 1 contra mim. O quarta empata, 2 a 2. O quinto, 3 a 2 contra mim, a expectativa é assustadora.
Minha posição é constrangedora. Fico de braços cruzado, ouvindo o que eles dizem. Os que me condenam, me chamam de TRAIDOR, os que absolvem, falam em HEROI NACIONAL. Lógico, não sou uma coisa nem outra. Que jornalista eu seria se não publicasse uma circular SIGILOSA E CONFIDENCIAL?
O sexto ministro, com a mesma suficiência, vota e me absolve, 3 a 3. Faltam apenas dois votos, é impossível fazer uma análise. Nem em posso fazer, estou em causa. Vota o sétimo ministro, contra mim, 4 a 3 pela condenação. Nunca estive na frente da votação, mas também a diferença nunca foi maior do que 1 voto.
Sobral Pinto, que depois do procurador geral fez brilhante defesa, veio sentar perto de mim. Baseou sua palavra na “minha carreira notável apesar de muito moço”, e na “impossibilidade profissional de deixar de revelar um documento estranhamente sigiloso”.
Vai votar o último ministro, que pode me condenar por 5 a 3 ou empatar o julgamento. Enquanto ele sobe à tribuna, Sobral aperta meu braço, como se me desse ânimo. Não demorou muito. Ao contrário de muitos que fazem voltas e reviravoltas, diz iniciando: “Vou empatar esse julgamento, que deveria absolver o jornalista por unanimidade”. E pergunta: “Como enquadrar na Lei de Segurança um jornalista que cumpre o seu dever?”.
4 a 4, o presidente suspende a sessão, quase 5 horas da tarde. Trava-se então a guerra de bastidores. Os que votaram contra mim querem transferir o julgamento, esperando o comparecimento dos outros 3 ministros (um está de férias, outro no hospital, o terceiro de licença). Ribeiro da Costa diz: “Vou reabrir a sessão e desempatar. Posso votar contra ou a favor do acusado. O que não pode haver é julgamento EMPATADO”. (Em 1963 já debatem a questão levantada agora, no julgamento do mensalão).
ABSOLVIÇÃO E LIBERTAÇÃO
O presidente dá o voto mais longo, derruba todas as alegações, desempata a meu favor, 5 a 4. E termina: “O jornalista está livre, pode ir para onde quiser”. Às 20h30 tomo o avião para o Rio, com Rosinha, Millôr e alguns amigos que foram a Brasília especialmente.
AS CONSPIRAÇÕES DE 63,
QUE APLAINARAM O CAMINHO
PARA O GOLPE DE 64

Conforme prometi, a lembrança desses 50 anos não se restringiria à minha prisão. Esse fato foi apenas um episódio da luta pelo Poder, manutenção ou conquista dele. Todo esse ano, rigorosamente histórico, foi consumido por conspirações. O maior conspirador foi o próprio vice João Goulart, transformado em presidente sem votos.
Para ele, o ano começou bem cedo (6 de janeiro), com a compra do plebiscito da volta ao presidencialismo. Foram investidas fortunas inacreditáveis, na cumplicidade de dar ao presidente todos os Poderes. Depois veio a tentativa de intervenção na Guanabara, minha prisão, sem sequer uma parada para reabastecimento, até os discursos subversivos de 1964. (Não chegarei até lá, termino em 1963.
OS GOVERNADORES
PRESIDENCIÁVEIS EM 65
SE INSURGIRAM CONTRA JANGO

Eram 6 governadores, todos candidatos a presidente em 1965. Consideravam que Jango preparava a “República Sindicalista”, sem votos, com ele comandando. Os seis governadores eram estes, por ordem de importância territorial ou econômica:
Ademar de Barros, governador de São Paulo – Já fora interventor, lançara oficialmente a candidatura a presidente. Na oportunidade, o Correio da Manhã, um dos mais importantes da época, “premiou” Ademar com um editorial que tinha o título: “Ladrão, não”. Ele protestou, disse que ia processar o jornal, ganhou outro, com o título complementar: “Ladrão, sim”. Magistral.
Magalhães Pinto, governador de Minas – Candidatíssimo, não tinha legenda, ao contrário de Ademar, dono do PSP. Não podia esquecer que em 1960, Juracy Magalhães, presidente da UDN, fora derrotado pelo próprio partido, que ficou com Janio, patrocinado por Lacerda. Magalhães rompeu publicamente com Jango, passou para a oposição, não era o seu estilo. Estava esperando alguma coisa, não muito distante. Acabou o governo em 1965, nomeado ministro do Exterior da ditadura.
Carlos Lacerda, governador da Guanabara – Não escondia suas ambições, acreditava nele mesmo e na sua capacidade de grande tribuno. Ligadíssimo aos militares, esperava o apoio deles, se enganou completamente. Logo em 64 (ainda antes do golpe) foi convidado para embaixador na ONU, recusou, acreditou em 1965, acabou preso e cassado.
Mauro Borges, governador de Goiás – Não havia reeleição, fazia um bom governo, coronel da reserva do Exército, esperava, como Lacerda, apoio da caserna. Também não foi apoiado, cassado e preso.
Ney Braga, governador do Paraná – Discreto, coronel da reserva, bom articulador e administrador, esperava que tudo isso o ajudasse. Não ajudou, mas não foi punido, terminou o governo tranquilamente.
Leonel Brizola, governador do Rio Grande – Seu mandato acabou nem antes, em 31 de janeiro de 1963. Já se prevenira, se elegera deputado pela Guanabara, com votação espetacular. De cada 5 eleitores, 3 votaram nele. Sem diálogo com Jango desde que este se recusara a nomeá-lo ministro da Fazenda, lançou a candidatura sem falar com ninguém. Contestado por causa do parentesco com Jango, respondeu: “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”. Atingido duramente pelo golpe, ficou 15 anos no exílio. Moço, voltou em 1979, teve duas chances, não concretizadas.
Juscelino, ex-presidente – Não conspirava, mas se mantinha candidato. Em 1961, transferindo o governo a Janio, lançou sua candidatura a outro mandato em 1965. Quanta gente acreditava nessa eleição, cada vez mais distante e inexistente.
Jango desequilibrava
Ainda no limite de1963, o presidente governava não para o futuro do país, mas visivelmente para o seu próprio futuro. Isso irritava e concentrava os militares, principalmente os que sofreram a derrota em 1961, quando não puderam reempossar Janio Quadros.
Os militares em ação
O mais destacado conspirador militar de 1963 era o general Costa e Silva, comandante do II Exército (São Paulo). Liderando grande parte do Exército, agia ostensivamente, sabia que na sua condição e importância, nada lhe aconteceria.
1963 ACABA, MAS
1964 JÁ CHEGARA

Todos esses personagens que ocuparam 1963, muito antes dele acabar, já estavam ultrapassados. Nenhum deles percebeu, apesar das minhas repetidas advertências. Algumas, pessoalmente. Outras, jornalisticamente.
PS – Alexandre Magno gostava de dizer que “Alexandria estava a 300 milhas do delta do Nilo”. 31 de julho de 1963, visto em 31 de julho de 2013 (50 anos),está na mesma distância.
PS2 – 1964 está para 1963 com um retrato na parede, e ainda dói.
PS3 – Arbitrário, atrabiliário, autoritário e tão torturador quando o Estado Novo de 1937 a 1945, 1963 condena a memória a um exercício lancinante e dilacerante de recordação.

Da Tribuna da Imprensa de 31-7-2013.

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