A LÍNGUA FERINA DOS CEARENSES FRASISTAS

Cearensidade frasistas
Tradição cearense, a língua ferina dos frasistas fez escola desde que Quintino Cunha inventava o humor e Augusto Pontes já avisava que o Fausto Nilo estava chegando

Augusto Pontes, Ângela Borges e Quintino Cunha: humor como expressão do mundo

É verdade que nem todo cearense vaia o sol, bota apelido nos outros ou faz piada com a desgraça, alheia ou própria. Para muita gente, esse sangue moleque que correria nos nascidos aqui não passa de estereótipo. Mas não tem como negar: certos tipos parecem ter existido para fazer jus à fama do humor sagaz do Ceará.
Mesmo quando a situação não incita o riso, a rapidez da resposta e a inteligência da tirada acabam promovendo o sujeito a um rol nem sempre seleto, o dos frasistas e suas mentes privilegiadas para a pilhéria.
Quintino Cunha (1845-1943), advogado e escritor que frequentava a Praça do Ferreira dos anos 1920 e 1930, é um dos mais lembrados. São tantos os causos emprestados a ele que é preciso fazer a ressalva de que nem tudo que se conta por aí é “quinquinhada”. Não se sabe ao certo qual situação inspirou Quintino, mas são dele os versos: “Adeus casinha da fome, jamais me verás tu/ Aqui criei ferrugem nos dentes, teia de aranha no cu”.
A espirituosidade do poema, dizem, teria nascido de uma temporada na casa de amigos, ainda na infância, onde não lhe serviram nada além de bolachas e água. Mas se fala também de um curto período na fazenda de um de seus clientes, conhecido pela mesquinhez.
Outra vez, conta Francisco José Souza na biografia Quintino Cunha (Edições Demócrito Rocha), ele teria presenciado uma discussão acalorada entre um advogado e um promotor quando ocupava temporariamente o cargo de juiz da comarca de Lages. Os ânimos estavam tão exaltados que Quintino teve de intervir - mas do seu jeito.
“O senhor é um mentiroso!”, gritou um. “E o senhor é um caluniador!”, esbravejou o outro. Foi a vez de Quintino: “Agora que os dois já se apresentaram, podemos continuar os debates”.
Neto do escritor, Plautus Cunha Filho conta que a verve do avô não teve herdeiros na família. “Ele era único”, diz, orgulhoso de ter visto Chico Anísio consagrar, em seu último show com Tom Cavalcante, que todos os humoristas descendem de Quintino.
Outro intrépido intelectual dos tempos de Belle Epóque, Francisco de Paula Ney (1858-1897) também fez fama com seus chistes. Poeta e jornalista, mesmo morando por muito tempo no Rio de Janeiro, é dele um dos epítetos mais conhecidos sobre Fortaleza. “A loira desposada do sol” está no soneto de autoria de Ney que leva o nome da Capital.
Segundo a pesquisadora de literatura cearense Lilian Martins, Paula Ney era conhecido pelos amigos e desafetos como sujeito inteligente e de respostas prontas. Sempre à mesa dos bares da rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, “seu humor fluía com facilidade”.
Com o correr dos anos, a safra de frasistas cearenses só se renovou. Publicitário que também foi secretário estadual da Cultura, Augusto Pontes (1935-2009) é considerado por muitos o guru da geração de intelectuais das décadas de 1970 e 1980 em Fortaleza.
Algumas de suas frases mais famosas viraram música na voz de Belchior e do Pessoal do Ceará. “Vida/ vela/ vento/ leva-me daqui” é uma delas e aparece em “Mucuripe”. Mas há outras tantas sobre política, amor, filmes. “A união só se faz à força” e “Em briga de amor quem perde, ganha” são dois exemplos. Amigo do arquiteto e compositor Fausto Nilo, ele gostava de soltar quando encontrava os companheiros de bar:
- Turma boa, tenho duas notícias, uma boa e uma ruim. Qual vocês querem ouvir primeiro?
- A boa!
- Fausto Nilo vem aí!
- E a ruim?
- Ele vai cantar!
SAIBA MAIS
AUGUSTO PONTES
“Ele fazia várias versões das frases. Se divertia horrores, era super vaidoso com isso, mesmo fingindo que não era. Gostava muito de fazer as pessoas rirem”, lembra Natércia Pontes, filha de Augusto, publicitário e ex-secretário de Cultura do Estado. 
Sempre com um tirada na manga, mas também “no bolso, no paletó e principalmente no chuveiro -- ele adorava falar essas coisas no chuveiro e depois anotar”, Natércia diz que há um sem-fim de situações em que o pai não perdia a oportunidade de brincar com as palavras.
Traço comum entre frasistas, essas figuras boas de raciocínio e leves de alma, além de não perder o timing, eles costumam não se importar quando lhe atribuem uma autoria indevida em situação engraçada; querem mesmo é manter o riso.
SERVIÇO
Quintino Cunha (2007)Autor: Francisco José Souza 
Editora: Edições Demócrito RochaQuanto: R$ 9,50
Biografia do poeta e jurista cearense que fez fama não apenas nos fóruns, mas também nas praças e bares. Conhecido por suas tiradas espirituosas, amplamente divulgadas pelo filho Plautus em seu livro Anedotas de Quintino, o poeta publicou seu famoso livro Pelo Solimões na Europa, onde recebeu uma medalha do rei de Portugal.
Bonito pra chover – ensaios sobre a cultura cearense (2003)Autor: Gilmar de Carvalho (organizador)
Editora: Edições Demócrito Rocha (esgotada).
O livro reúne 26 ensaios que investigam o que fez do Ceará um lugar diferente. Os autores escrevem e questionam desde nossa decantada cordialidade à capacidade de ganhar o mundo. Das raças que nos formaram à culinária. Dos marcos históricos aos arremedos de cultura. Complexo e abusado, 'Bonito pra Chover' não é uma obra que festeja ou dote o povo de uma dignidade de que ele não tem, mas é o livro que busca um novo caminho e que certamente almeja fazer desse povo algo digno de nota.

Do Jornal O Povo de 15-6-14.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

NOTÍCIAS EM DESTAQUE - 1ª EDIÇÃO DE 25/02/2024 - DOMINGO

NOTÍCIAS EM DESTAQUE - 2ª EDIÇÃO DE 25/02/2024 - DOMINGO

NOTÍCIAS EM DESTAQUE - 1ª EDIÇÃO DE 26/02/2024 - SEGUNDA-FEIRA