Pular para o conteúdo principal


ZÉ LINGUIÇA

J. R. Guzzo
J. R. Guzzo
Pode até não ser uma verdade comprovada pela história, mas ninguém discute que se trata de uma belíssima ideia. Na Roma antiga, quando um grande general voltava de uma campanha vitoriosa no estrangeiro, fazia-se uma fabulosa procissão triunfal pelas ruas da cidade, o “triunfo”, para exibir diante do mundo a glória do comandante vencedor, e homenagear a grandeza que ele trazia à pátria.
Era a honra máxima que um cidadão romano podia obter, e dava um trabalho danado chegar lá.
Ele tinha de ter matado em combate pelo menos 5.000 soldados inimigos.
Tinha de mostrar, presos, os chefes derrotados.
Tinha de ter enfrentado um exército pelo menos equivalente ao seu.
Tinha, sobretudo, de trazer sua tropa de volta para casa.
O problema, nisso tudo, é que os romanos da Antiguidade eram gente que tinha em altíssima conta a modéstia pessoal — e, em consequência, fechava a cara para qualquer demonstração de soberba. O que fazer, então, na hora em que o general vitorioso desfilava perante a multidão como se fosse um rei? É aí que aparece a ideia mencionada acima.
Logo atrás do “triunfador”, no mesmo carro puxado por quatro cavalos que ele conduzia, ficava um escravo que, de tanto em tanto tempo, lhe dizia baixinho ao ouvido: “Memento mori” (em tradução livre, “lembre-se de que você vai morrer”). Nada melhor, provavelmente, para baixar o facho de qualquer alta autoridade que começa a se achar.
Esse procedimento poderia ser o tipo da coisa útil no governo brasileiro de hoje. Seria uma beleza, por exemplo, se o chanceler Antonio Patriota, ao desfilar pelo planeta com a sua bela pasta de couro, distribuindo em nome da presidente Dilma Rousseff as advertências do Brasil para os grandes, médios e pequenos deste mundo, tivesse algum recurso parecido — naturalmente, com as adaptações necessárias às nossas realidades atuais.
Um oficial de chancelaria, digamos, andaria sempre atrás dele; só que, em vez do severo aviso romano, ficaria repetindo ao seu ouvido: “Lembre-se do Zé Linguiça”. Deveria ser o suficiente para o dr. Patriota cair bem depressa na real.
Ele se lembraria imediatamente de que vem do país do Zé Linguiça — e ninguém, nem a presidente Dilma, consegue transformar em potência mundial um país que chega a ter no centro do maior espetáculo jurídico da sua história, mesmo por um momento fugaz, um cidadão chamado Zé Linguiça.
Quem acompanha o julgamento do mensalão pode estar lembrado desse Zé Linguiça — o elo perdido entre um dos réus e a mala preta do professor Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Mas falar dele justo nesta hora, na suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima?
Bem no momento em que cada ministro quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1.000 páginas para dizer se um cidadão é culpado ou inocente? Pois é — aí vem o Zé Linguiça, e com um personagem desses não há pose que resista. Some, na hora, o Brasil Grande. Aparece o Brasil de verdade.

A presidente precisava mesmo de alguém que lhe lembrasse: “Todo ano há 50000 homicídios no Brasil” ou “O ensino médio brasileiro, pelos dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de zero a 10” (Foto: Valter Campanato / ABr)
A presidente precisava mesmo de alguém que lhe lembrasse: “Todo ano há 50 mil homicídios no Brasil” ou “o ensino médio brasileiro, pelos dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de zero a 10” (Foto: Valter Campanato / ABr)
Falou-se do ministro Patriota, mas o aviso ao pé do ouvido vale para qualquer grão-duque do poder público brasileiro, e para a própria presidente da República, quando começam a imaginar que são o rei Luís XV de França. Quanto à mensagem dos lembretes, então, há uma infinidade de coisas a dizer além do Zé Linguiça.
A voz poderia lhes recordar, por exemplo: “Todo ano há 50.000 homicídios no Brasil”. Em três anos, com 150.000 cadáveres, é o equivalente a uma bomba de Hiroshima. Ou: “O ensino médio brasileiro, pelos dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de zero a 10”.
Seria possível lembrar que as dez entradas de São Paulo, a cidade mais rica e possante do Brasil, formam uma das mais pavorosas sucessões de favelas de todo o mundo; nosso desenvolvimento, em qualquer lugar do país, tem o dom de atrair miséria.
Também seria útil que nossas autoridades, em seus acessos de grandeza, lembrassem que a população brasileira está proibida de frequentar áreas inteiras das grandes cidades, tomadas por bandidos, vadios e predadores diversos, como se vivesse sob o toque de recolher imposto por um exército de ocupação.
Como essa gente que está no governo pode dormir em paz num país assim?
Esse pesadelo não foi criado pelo governo da presidente Dilma, nem será resolvido por ela. Mas então, como o rei da Espanha recomendou tempos atrás ao coronel Hugo Chávez, por que não se calam?
Por que se metem na vida do Paraguai ou dão palpites na economia da Europa?
Por uma questão de decência comum, e em nome do senso de ridículo, todos deveriam fazer, já, um voto de silêncio.

                                                                  <><><><><>

Artigo publicado na edição impressa de VEJA (2284) que está nas bancas

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

NOTÍCIAS EM DESTAQUE 3ª EDIÇÃO DE 07/02/2025 - SEXTA-FEIRA

  Do Pinterest Lula pede para povo 'não comprar comida cara' usando gravata Louis Vuitton de R$ 1,6 mil O presidente utilizou o item de luxo durante entrevista em que incitou a população a não comprar alimentos se 'desconfiar que estão caros' [Ler mais] Com Lula, Itaú tem o maior lucro da história 'desse país' Com os maiores ganhos entre os bancos privados do Brasil, empresa tem entre os principais sócios Walter Salles, de Ainda Estou Aqui [Ler mais] Meme: Janja, a garota-propaganda do caos Em montagem que circula nas redes sociais, a primeira-dama mostra manchetes de jornais que informam sobre a alta do preço dos alimentos [Ler mais] Governo Lula: atraso de R$ 400 mi em repasses prejudica pacientes renais do SUS Mais de 700 clínicas de diálise não recebem recursos desde dezembro [Ler mais] Barroso, Lira e Pacheco gastaram R$ 6,7 milhões com viagens em jatos da FAB Gasto inclui um 'voo misterioso' do presidente do STF em janeiro de 2024 [Ler mais] Motta:...

Notícias em Destaque

Brasil tem menor média de casos de covid do ano(Ler mais)   Mourão nega renúncia e diz que segue no governo ‘até o fim’ Relação entre o vice e Jair Bolsonaro (sem partido) voltou a ser alvo de especulações após o presidente dizer que o general ‘por vezes atrapalha(Ler mais) A economia a gente vê depois: Governadores e Prefeitos ainda não se pronunciaram em como vão ajudar a população: “o depois chegou, e agora?”(Ler mais) Com ódio: Governo Doria multa o presidente Bolsonaro e sua comitiva: “pode chegar a 290 mil reais”(Ler mais) Ministros do STF querem resposta imediata de Luiz Fux sobre declarações do presidente alegando fraude nas urnas eletrônicas(Ler mais) Renan Calheiros e Humberto Costa querem sigilos bancários de Jornalismo independente “disseminadores de fake”(Ler mais) Justiça prorroga prisão de autor do vandalismo em estátua de Borba Gato(Ler mais)